31 de janeiro de 2011

Conto: Tiro ao nada

Tiro ao nada

Carmem, ao acordar, viu o teto escuro de seu quarto, onde sombras pareciam dançar sobre ela. Então ouviu um estrondo horrível. Ao abrir a janela, acalmou-se. Eram os ônibus violentos cortando a rua. Ligou a tevê. Ana Maria Braga apresentava sua mais nova edição noturna: “Glutões na Ativa”. Era um programa semanal que abordava temas como: assalto à geladeira, coxas de frango e pipoca na madrugada, geléinha doce e outros quitutes saborosos.

Súbito! Outro rugido, desta vez mais forte, seguido de uma luz branca que tomou conta do céu. Carmem, olhos arregalando, quase pulando da cara, escondeu-se embaixo da cama. Lá fora, era como se terra e céu se juntassem. O horizonte sugava ruas, carros, casas e tudo mais. Não havia gritos, nem choro, simplesmente o fim de tudo. Ninguém soube o porquê. Um dia vida, no outro, nada.

Lembrou-se da infância ao lado de sua avó, a carioca malandra que fazia uma sopa experta. Era sempre a mesma coisa, o cheiro vinha da panela, inundava seu quarto fazendo-a salivar. Carmem abria o armarinho escondida, roubava a vodka de rótulo azul e enchia dois copões, um pra ela e outro pra velha. Cada uma na ponta da mesa, brindavam e repetiam: “Só pra abrir o apetite, né?”. Então entornavam os copos, o da vó com um pouco de soda e o de Carmem na pureza. O gosto péssimo chamava a colher para a mão, mas a velha já tinha metido a cara no prato como cachorro faminto. “Slurrrrp, slurrrrp”, a sinfonia de sugação começara. Meio louquinhas, detonavam três pratos da sopa em menos de 20 minutos. Ao fim, sentavam-se no sofá como duas bonequinhas para assistir juntas a novela “Chamego Insano”.

Mas essa era apenas uma lembrança flutuando no vácuo de um mundo que acabara. Vinte e nove milhões de anos. Era isso que havia demorado. Meu deus! Se é que ele existe!? Talvez, existisse. Pensou Carmem. Talvez tenha se arrependido do erro que cometeu a criar tamanha porcaria nefasta. Pensou novamente.

Era o fim do corpo, o fim, até mesmo, da suposta alma que todas as religiões pregavam existir. Ainda havia luz, que se refletia em si mesma e expandia-se no nada. A imensidão não poderia ser contada, recomposta. A existência era um feixe de luz branca correndo e se multiplicando até encontrar os ecos da morte, ou achar a si mesma dando voltas e voltas, contornando-se.

Havia ainda a praia, que outrora servia Carmem como refúgio e lazer. A lembrança vinha e voltava, como planta arisca que cisca pelo oceano. Passando na perna dos banhistas, imitando tubarão e ouvindo o gritinho da menina que mexe e remexe as perninhas tentando se desvencilhar. Essa lembrança misturava-se a outras. Os arvoredos onde o pai pegava madeira, seu tio afiando faca no meio da rua e gritando pras donas saírem pra ver. O gato, Maylou, que tinhas listras pretas no pelo cinza aveludado. Flutuava em seus bigodes sempre uma gotícula dágua que Carmem adorava secar e depois esfregar em seus dedos. A gota de Maylou, o eterno desencontro que era a vida de Carmem, outrora menina delicada e bonita, outrora uma loira tresloucada e sensual, mas ainda bonita.

Aos poucos, até as lembranças sumiam. Uma música, um grito ou sangue. Elas lutavam para serem vivas. Amontoavam-se umas às outras buscando criar algum tipo de sentimento, mas não conseguiam. O cachorro de Mario, o pai de Bianca brigando com ela na mesa de jantar, o cabelo crespo de Felipe e sua eterna namorada que o traía pela noite. O branco, o branco pálido e gordo assumia ares de rei, ganhava tudo, os espaços cresciam. Lembranças jogadas para o alto e para os lados, explodindo até serem extirpadas por completo. A luz, ávida por espaço, tomou conta de tudo. Era ela a existência e a inexistência.

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